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May 17, 2020

Cary Brand.txt (parte 1)


Numa noite de Verão acompanhei a minha mãe a ver um clássico de cinema; passava um pouco das 22h00 combinadas com os organizadores do evento ao ar livre e aguardava com a impaciência de um adolescente na fila composta por menos de trinta pessoas. Chegada a nossa vez a mãe pagou os bilhetes do filme e avançámos pelo torniquete para um enorme espaço de aura verde com a relva húmida iluminada pela Lua; havia um ligeiro cheiro a cloro no ar deixado pelos últimos pés descalços que tinham saído da enorme piscina pública quatro horas antes, muitos minutos antes do movimento do pôr do Sol desenhar no chão de pedra a longa sombra das três dúzias de árvores que cercavam o recinto.  Agora a enorme piscina estava calma e a superfície tranquila da água escondia a excitação dos risos dos que ali mergulharam nesse dia. Ao fundo, em frente da relva extensa e depois das pranchas de salto, estava a parede rectangular, alta e pintada de cal da sala de máquinas;  nessas quartas-feiras, mais ou menos à hora combinada rodava uma cópia pirata do filme seleccionado pelo Clube de Cinema de Tomar. As luzes desligam-se e os primeiros frames projectado naquela parede escreviam RhagavChakrabarti.com Translations. ( Muitos anos depois este "legendeiro" continua no negócio da tradução e os seus caracteres estilizados estendidos num qualquer ecrã moderno lembram-me de quando naquelas noites mais frias a minha mãe, sem perguntar, me estendia a manta para cima das pernas).
Um gato, atraído pelo calor, atravessa-se à frente do projector fazendo surgir no ecrân improvisado duas orelhas e viro-me para ver a criatura que lambe deliciosamente a pata traseira, esticando-a até tocar os bigodes; é prontamente enxotado pelo responsável da piscina e mete-se pelos arbustos da vedação à esquerda desaparecendo de vista. O filme começa e Cary Brand é "o Gato" em To Catch a Thief de Alfred Hitchock.

O rosto de um homem nos seus cinquentas e com as maçãs do rosto vincadas surge de perfil no ecrã improvisado; A sua pele aparentemente velha e morena transformava-se em bronze esculpido na maioria dos planos seleccionados. Era alto e vestia elegantemente vários fatos ao longo de todo o filme, mesmo quando salva uma bela donzela a saltar telhados não o faz nos curtos calções de praia que usa numa das ocasiões.

Poucos dias antes, no infinito tempo suspenso de uma insónia, fazia zapping na televisão e parei para ver uma cena particularmente memorável em que um ladrão francês estranhamente semelhante, usando fato....de-treino executa na perfeição o roubo a um museu em Paris: num esplendor de demonstração da capacidade física humana, transpõe e desvia o seu corpo de estatura média de uma série de linhas, feixes de laser com padrões aleatórios que atravessavam todo o espaço do hall na vertical e horizontal, formando perpendiculares que quando se moviam rápido para a câmera fechavam no espetador qualquer hipótese de escapatória. Evitando a luz como uma sombra e com irreal elasticidade atinge o seu prémio, uma pequena mas valiosa estatueta encrostada de várias pedras preciosas que rapidamente substitui por uma nota escrita; pouco tempo depois no diálogo entre dois polícias patetas descobrimos que a alcunha deste francês, rasurada na nota lê "Le chat".

Cruzei as pernas (agora tapadas por uma manta) e voltei-me para a frente com atenção redobrada na esperança de desvendar o segredo daquele arquétipo homem dos 50's que de forma astuta e inventiva salta até à riqueza e mulheres.

A brisa soprava mais fria a cada minuto de película; no intervalo as luzes da piscina acendem e numa troca de comentários com o meu padrasto elogio a indumentária do personagem; olho em redor e num bocejo noto que à excepção de três homens, no qual se inclui o meu padrasto, todos vestiam jeans com camisa e casaco.
A segunda parte começa com um plano de um Citroen DS a descer uma maravilhosa encosta verde e azul em Côte d'Azure no Sul de França. Enquanto alguns espectadores pareciam ficar distraídos, uma mão cheia de outros continuava a observar com óbvia proximidade aquele personagem; depois de os fixar estranhamente com o olhar imaginei mesmo que os mais velhos tivessem transformado aquela parede num espelho luxuoso, projectando em montagem os seus próprios triunfos exóticos. Brinquei com a ideia de um deles ser o ladrão bem sucedido que escapou para uma pequena cidade no interior de Portugal inspirando a história; durante largos minutos esse pensamento entretinha-me mais do que as imagens que rodavam à minha frente até aos créditos. Ainda com as luzes apagadas, vejo de relance uma forma mexer-se do outro lado da vedação por entre alguns arbustos. Escondido, um gato piscava-me o olho-


Vasco Figueiredo, Tomar, Maio 2020.

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