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May 31, 2020

Milan Kundera.txt (Carey Brand parte 2)


Na noite de quinta-feira deitava-me com o "Livro do Riso e do Esquecimento" de Milan Kundera ao lado da almofada, a Saudade está na sala a ver televisão: via sempre as gravações dos programas até tarde, tinha-o feito na noite anterior mesmo depois do cinema ter acabado a altas horas. De cabeça enterrada na almofada e a sonhar acordado, re-imagino de olhos fechados o livro na câmera-obscura do sono e dos sonhos.

Milan Kundera escreve os seus textos em cima de frágeis telhas, sentimentos complexos expressos em palavras simples e digeríveis que nos aliciam a tentar tirar delas o sentido da vida; equilibra o leitor entre aquilo que lê com prazer e entusiasmo e a obliteração do nihilismo, avançando a narrativa com agilidade. Como um gato que salta prédios ou o ladrão que se esquiva de lasers, em cada página dobra-se e contorce-se escrevendo nessa branca e ténue linha, saltando pelos telhados que são as grandes emoções humanas, a tristeza e a alegria profundas encurtando a distância do salto que dá com uma leveza fácil de escrever.
Por vezes deixa cair uma das suas personagens e somos invadidos por uma tristeza profunda: pequenos momentos de compreensão absoluta da tragédia que é a vida, sentimento a que chama Litost, por exemplo:

Quando a professora de Português Célia Marques, que vivia sozinha numa vivenda em Oeiras recebeu o e-mail de colocação na escola Escola Municipal de 2º e 3º ciclo do Barreiro ficou desconfortável com a idea: se aceitasse comprometeria-se em acordar todos os dias às 6h30 da manhã e atrevessar no seu Volkswagen a ponte 25 de Abril, com a luz  do Sol horizontal a dificultar a visão da estrada, numa comuta diária de uma hora; depois de muita ponderação aceitou: tinha fama de gostar de ajudar os outros e as turmas propostas tinham vários alunos de contextos sociais complexos, o desafio aliciou-a.
Cinco anos de bons resultados e boas avaliações promoveram Célia ao cargo de diretora de agrupamento, pouco tempo depois foi-lhe entregue a ficha do Daniel Oliveira dos Santos que lia: "Reprovado por duas vezes no 9º ano, conhecimentos limitados de Português e Matemática; Pai encarcerado por mais oito anos, tem cinco irmãos e a mãe Jacinta Oliveira trabalha numa fábrica das 23h00 às 9h00"; a foto no ficheiro mostrava um rapaz de rosto bonito e cor de pele molata que lhe fez lembrar o jovem da pastelaria que lhe vendia a primeira fornada de pão todos os dias, esquecia-se regularmente do pão no branco de trás do carro que acabava por usar para torradas no dia seguinte.
Durante dois anos lectivos acompanhou de perto o percurso e evolução do Daniel, e depois de várias chamadas ao Conselho Diretivo foi guiando-o para as àrea mais técnicas e que pareciam motivá-lo acabando este por se formar em Serviços de Informática que dava equivalência ao 12º ano.
Dez anos depois a professora Célia estacionava o carro em segunda-fila na Avenida D.Carlos 1 em Lisboa e ligou os quatro piscas, correu para dentro do café Républica onde ia buscar um galão para levar; quase o entornava no chão quando ouviu um enorme estrondo lá fora: um Fiat Punto preto tinha embatido na porta de condutor do seu Volkswagen abrindo uma pequena cratera. Célia, de galão na mão junto à porta do café, observava de boca aberta o carro preto a fazer caoticamente marcha-atrás, o farol direito estava pendurado por fios e quase a arrojar pelo alcatrão. O ocupante do lugar de pendura gritou "até logo Vaca!!" e o carro arrancou a toda a velocidade com o fumo preto do tubo-de-escape aberto a cubrir a matrícula. Naquele pequeno espaço de tempo que a adrenalina parece esticar, a professora Célia de biologia mal teve tempo de reconhecer o Daniel dos Santos.

A velhinha numa das duas saídas da escada do metro do Rato pela qual passava todos os dias depois de sair da faculdade tinha feições que muito me faziam lembrar a minha avó Saudade. Fazia bordados com mensagens bondosas que depois vendia por um euro; comprei-lhe três e abençou-me. Durante dez anos esteve, com mais ou menos regularidade, sentada  naquelas escadas molhadas e com cheiro a merda, a bordar.

Eram três da tarde e trabalhava num restaurante na rua de S. Bento; depois de vários dias com lucros comprometedores, eu, outros dois empregado de mesa e dois cozinheiros passámos dois terços desse turno a discutir e a preparar o que desejávamos ser o melhor serviço de jantar da semana. Nessa sexta à tarde discutiu-se entre muitas outras coisas, se as cenouras deviam desidratar durante mais trinta segundos e se as línguas de gato estavam suficientemente desfeitas para juntar ao crumble de maçã. Durante toda a noite apareceu apenas um cliente que bebeu um copo de vinho da casa; pagou, agradeceu e foi-se embora. Eram onze e cinquenta quando embrulhei o crumble que com muito cuidado coloquei na terceira prateleira do frigorífico; Trocámos poucas palavras, fecharam-se as luzes e as portas e subimos uma longa rua até ao largo do Rato onde cada um tomou o seu caminho até à cama.

A Leonor, também conhecida por youtuber Leona passou três meses a preparar-se, editou e produziu mais de oitenta vídeos ao longe de três anos com o auxilio de tutoriais online tais como "Edita o teu vídeo como uma PRO!" e "Os melhores thumbnails para o youtube" . Durante os primeiros dois anos amealhou 110 subscritores e uma média de 20 visualizações por vídeo. Desistiu para sempre quando no octogésimo primeiro vídeo sobre direitos das mulheres perdeu o seu amigo de infância como subscritor. Só voltaria a aparecer num VRideo de youtube vinte anos depois, a pedido da filha.

O desfile neurótico de Litost quebra a 4ª parede quando a minha gata "Patti" salta para cima dos lençóis da cama. Na maioria das noites enroscava-se aos meus pés, até que decidia deixar de o fazer parando durante cerca de três anos, ao final dos quais regressava ao hábito sem ressentimentos: supus durante algum tempo que na sua perspectiva ficava magoada comigo por nunca ser eu a deitar-me ao seu lado; pouco tempo depois de completar 19 anos começou a gritar (entenda-se... miar muito alto) nos corredores da casa durante a madrugada e o desconforto da iminência e inevitabilidade da sua morte instalou-se em mim como a nostalgia melancólica se instalou em Milan Kundera.
Com os pensamentos a manterem-me acordado decido sentar-me à secretária e ligar o Asus; deitada e de olhos fechados a linda gata segue-me e aquece-se do ar cuspido pelas ventoinha do computador. Embalado pelo ronronar, levo as mãos do pêlo sedoso até ao teclado, escrevo algumas palavras e invento um personagem: um homem ágil e atlético que enriquece roubando jóias e sentimentos a mulheres. Envelhece em liberdade: três anos antes da sua morte numa quarta-feira à noite de uma noite de Verão, ao lado de uma enorme piscina, sentado e com um cigarro aceso nos lábios que desvia cuidadosamente dos compridos bigodes, estica as pernas e vê um filme sobre um ladrão-

Vasco Figueiredo, Maio de 2020, Tomar