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January 5, 2021

Caixa de fósforos.txt


A senhora Deolinda abriu a porta, com um passo em frente vários fios do seu cabelo fino entrepuseram-se entre o Sol que transbordava das duas grandes janelas e a cara dele, sombreando o contorno das maçãs do rosto com um padrão tribal, enquanto o loiro à sua frente ardia. Entraram e observou curioso, abanando ocasionalmente a cabeça para validar as apresentações da senhoria; começou a imaginar quadros coloridos nas paredes, o Asus ligado à tomada, , o cheiro das flores no Verão, das plantas que plantaria no pequeno alpendre; a vida passaria-se naquele quarto rectangular, chão de madeira cinzenta e paredes brancas, com um armário incorporado e uma grande cama de casal.
"Fico com ele", disse sabendo que alí cabia o seu destino, orçamento e bom gosto.

A porta fechou-se e só voltou a abrir passado duas semanas em Janeiro, quando chuva fria caía míuda. Lá em baixo, a dobrar a esquina da longa avenida, um Peugeot preto conduz devagar até encaixar num dos dois lugares livres junto à porta do prédio, como uma caixa de fósforos numa gaveta à espera de uma próxima ignição.
Pertenciam-lhe poucas coisas mas o número impar de vezes que percorreu os lances de escadas adormeçeram-lhe os braços e as pequenas gotas porosas de suor no coro cabeludo davam ao seu cabelo preto um aspeto oleoso e frágil. Carregou as duas malas com roupa e quatro caixotes pesados até ao último apartamento do lado direito, segunda porta do corredor depois da casa de banho, pousando a carga no canto superior direito do rectangulo (com a porta do quarto como referência), à frente do armário. Cansado deixou-se cair de costas na cama.

Quando acordou a luz do Sol tinha desaparecido e dado lugar a uma aura laranja, característica das luzes dos candeeiros das velhas ruas de Lisboa em 2017, antes do aparecimento dos postes de iluminação LED; projetavam na parede cinzento-escuro do quarto a silhueta a negrito de um poste de iluminação e dos corvos que lá pousavam- tateou o ambiente escuro até apalpar a pequena caixa quadrada da DHL que procurava: tinha imaginado este exato momento três meses antes, no dia em que decidiu ir viver para Sintra, sugerindo-lhe agora um deja vú em que os seus dedos compridos e tortos retiravam no escuro de um quarto qualquer um belo candeeiro de uma caixa pequena.
Pousou-o no chão e era lindo: um vitral redondo de mosaicos pretos e brancos que reluziam no escuro e faziam lembrar o brilho dos olhos da ex-namorada Inês que no mesmo escuro de há muito tempo mas noutro quarto, lhe estendia com umas mãos bonitas aquela prenda.
Ligou a ficha à tomada do canto superior esquerdo e num momento humano, toda a existência do Universo na forma daqueles fotões fez alastrar pelas quatro paredes cinzento-escuro um gradiente até ao branco singular da fonte de luz.

Sentou-se na borda da cama; desfez os laços dos ténis e calçou umas Nike pretas e vestiu uns calções azuis-escuros do Boca Júnior que lhe ficavam pelos joelhos e uma t-shirt branca lisa de polyester. Levantou-se, era esguio e com uma passada larga das suas pernas altas chegou à sua mochila Eastpak preta: o recibo da compra desta mochila, que com nove anos tinha guardava numa gaveta da mesinha-de-cabeceira no quarto de casa do seu pai em Odivelas, registava a data 01 Março 2007 e teria então vinte e três anos, e apesar de ter mandado remendar alguns buracos, permanecia até esse dia tão funcional e útil como na primeira semana em que a usou. Abriu o fecho da bolsa mais pequena e retirou um relógio Garmin que colocou no pulso, tocando-lhe com o dedo indicador o mostrador lia "Bem-vindo João" e prontamente projetou na sua pele uma interface gráfica que se estendia desde o pulso até aos nós do punho; a interface ajustava-se aos movimentos da mão e do braço permanecendo clara e uniforme, mostrando num gráfico o total de kilómetros percorridos nesse último mês de Janeiro, 333 km. Com gestos rápidos navega pelos menús e marca 5 locais por onde intenciona passar quando sair para correr dalí a 5minutos. Abre o fecho da bolsa grande para retirar uma garrafa de àgua Penacova cheia, atira o telemóvel Samsung para cima da cama e sai: primeiro pela porta do quarto, depois pela porta do apartamento e finalmente pela porta do prédio, fechando todas atrás de si.
Quando voltou estava encharcado em suor, as sobrancelhas cerradas e despenteadas tinham falhado em proteger os seus olhos daquela àgua toda que lhe escorria pela testa e semi-cerrava-os com a sensação de ardor.
Sentou-se na borda da cama e descalçou os ténis da Nike, os calções do Boca Júnior e a t-shirt branca; todo nu chegou-se até uma das grandes malas que naturalmente permaneciam no canto superior direito do quarto, de onde tirou uma toalha vermelha comprida com um desenho de tema nipónico onde dois pandas partilham e comem um ramo de bamboo numa floresta.
Deixou a porta do quarto entre-aberta, descalço e segurando a toalha dobrada na axila e uma garrafa de shampoo, entrou na casa de banho imediatamente à esquerda.

Podia-se ouvir a àgua a cair no chão do políban e o som de uma tampa de plástico a abrir e a fechar..."ummmtá...ummmtuu♫". O quarto estava escuro com a excepção da mistura da ténue luz amarela da rua que brilhava por entre as gretas dos estóres fechados e a luz branca do candeeiro. O som abafado da àgua a cair cessa e a porta do políban faz barulho ao deslizar para a direita... no canto inferior esquerdo do quarto, do lado da rua, uma das duas grandes janelas parcialmente aberta deixa entrar violentamente o ar gélido das onze da noite de Sexta-Feira.

Às 8h30 da manhã do dia seguinte a luz que entrava no quarto pelas brechas dos estores ía aclarando o cinzento. Depois de lutar contra o despertar e de rebolar na cama algumas vezes o João cedeu finalmente, de costas viradas para o colchão abriu os olhos para o teto e ficou alguns minutos a fixar apenas o rectàngulo cinzento que ía aclarando à sua frente. Torceu-se agilmente para chegar à mala Eastpak do seu lado direito, da bolsa grande tirou um livro de capa cor-de-rosa e uma caneta preta da bolsa pequena com a qual escreveu na palma da mão em letras gordas: "comprar cortinados ASAP".
Com as costas musculadas encostadas à cabeceira da cama de casal, abriu o novo livro cuja leitura pretendia associar à inauguração da sua nova vida em Sintra, desde rapaz que era assim, agora tornado homem de cerimónias e rituais. Ainda com sono e de pestanas coladas, começou a ler:

"A Saudade vivia ao pé do rio, nas tardes de Verão sentava-se numa poltrona bordada a amarelo torrado que na verdade era de ouro, da sua janela não se via mas ouvia-se a àgua a cair quando estava calor, chegava húmida à orelha carregada pelo ar fresco com o som dos patos e peixes a dançar a vida."

Vinte páginas depois, pousou o livro de capa cor-de-rosa no chão, esticou as pernas e sentado na borda da camara esfregou a cara. Levantou-se e foi até à cozinha preparar e comer um bom pequeno-almoço, para depois, de barriga aconchegada, esvaziar as caixas e arrumar e dispôr todos os pertences que ainda as ocupavam.

(continua)